Documentário conta três casos de mulheres com síndrome de Munchaunsen por procuração, ou compulsão por verem seus filhos adoecerem – provocando ou forjando sintomas
Tanya ligou para o 911 apavorada porque seu filho mais novo, Matthew, havia parado de respirar. Os paramédicos chegaram à casa e encontraram o menino bem. Outras ligações se sucederam, todas relacionadas a problemas cardiorrespiratórios: parada respiratória, desmaios, apinéia, dificuldade para respirar... Quando estava no hospital, sentada ao lado do leito do filho, Tanya se tranquilizava, sentia-se em paz. Articulada, era familiarizada com o vocabulário médico. Certa vez, os paramédicos encontraram o menino exausto, como se tivesse passado bons minutos lutando para sobreviver; como se a mãe o tivesse asfixiado. Reticentes, os médicos do hospital começaram a investigar o passado da família. Descobriram que se mudava frequentemente de cidade e/ou Estado. Descobriram até que, quatro anos antes, Morgan, a segunda filha do casal, havia morrido subitamente por causa indeterminada antes de completar um ano. Kimberly, a mais velha, lembra-se pouco do episódio da irmãzinha, já que tinha apenas três anos à época. Quanto a Matthew, jamais o viu passando por qualquer episódio respiratório. Eles só aconteciam quando mãe e filho estavam sozinhos. Tanya foi diagnosticada com síndrome de Munchausen por procuração. Isso significa que tudo o que aconteceu com Matthew foi provocado ou forjado pela mãe. A prova final foram pequenos sinais no rosto do menino, que indicavam asfixia. Tanya foi afastada dos filhos e condenada a quatro anos de prisão pela morte consciente da pequena Morgan.
Daniel teve trauma cerebral. Ele é uma das vítimas de Munchausen mostradas no documentário da Discovery
Quando acontece "por procuração", é a mãe que violenta o filho (na grande maioria dos casos), provocando nele sintomas ou mentindo para os médicos que eles aconteceram. Todo o drama em volta da criança satisfaz a mãe: da equipe médica ao ambiente hospitalar. "Ela gosta da doença, do jeito que os médicos e enfermeiros agem, gosta do doente ao lado, do drama... Ela é personagem de um filme dramático", afirma Reynaldo Gomes de Oliveira, pediatra da Faculdade de Medicina da UFMG e que mantém o site Munchausen Brasil. Segundo ele, é um distúrbio difícil de tratar. Alguns especialistas acreditam que nem exista tratamento.
Tanya tem todos as características das mães com Munchausen. De acordo com o pediatra, são mães carinhosas e dedicadas, comunicativas, extrovertidas, normalmente receberam algum tipo de treinamento médico ou de enfermagem (ou são profissionais de saúde) e, talvez por isso, usam jargões médicos e tentam criar um vínculo com os profissionais do hospital para que eles não desconfiem. Dali a pouco, passam a controlar o que será feito com o filho e estão sempre sugerindo um procedimento terapêutico ou diagnóstico, "quanto mais complexo e mais invasivo, melhor", diz Oliveira. Ele explica que a mãe é sempre colaborativa. Os pais, por outro lado, são descritos na literatura científica como "muito cordatos, quase bobões". O pai nunca sabe e é sempre afastado da criança pela mãe.
Em hospitais de cerca de 60 leitos na ala pediátrica, assim como o Hospital das Clínicas da UFMG, onde trabalha Reynaldo, é normal aparecer até dois casos mensais de síndrome de Munchausen por procuração. Mas o médico afirma que o Brasil não tem uma estatística oficial da doença. Entre os casos que acompanhou no HC, Oliveira já viu mãe injetar saliva na corrente sanguínea do filho para provocar infecção generalizada; induzir o filho ao vômito com medicamentos; provocar diarréia crônica que se assemelha a uma infecção intestinal rara; asfixiar o filho e causar parada respiratória; colocar sangue na fralda, ouvido e urina; até injetar os mais variados medicamentos no filho para intoxicá-lo. "Durante a hospitalização da criança é ainda mais fácil provocar (sintomas). As mães usam o soro que já está sendo usado pelo filho, rouba medicamentos, espera a madrugada e prepara tudo com calma", afirma.
As mães misturam laxantes e outros medicamentos na comida e bebida do filho para causar diarréias, vômitos e intoxicações
Em outro caso, a mãe simulou um quadro de crise na vesícula e convenceu o médico a operar o filho. Depois da cirurgia – que não serviu para nada, a não ser prejudicar o menino –, foi a outro hospital e reclamou obstrução intestinal devido à operação anterior, uma vez que o filho não parava de vomitar. Reynaldo Gomes de Oliveira e seu colega de equipe entraram no quarto do paciente, que tinha acabado de vomitar, como indicava a sujeira no chão e o relato da mãe. Oliveira atentou para o fato do menino não estar com a boca cheirando vômito, tirou uma foto da cena e a analisou. "Ficou evidente que a mãe misturou resto de comida com água e, quando ninguém estava olhando, jogou no chão", diz Oliveira.
Nesses casos, a equipe médica fica "rendida" porque é treinada para acreditar no que a mãe conta, não para suspeitar. Acontece que, em casos crônicos, e pelos sintomas serem provocados ou forjados, os médicos não conseguem relacionar os resultados de exames com prováveis doenças, o quadro clínico da criança não faz sentido nem para o pediatra nem para especialistas, o resultado do exame está normal quando devia estar anormal... Então o médico pode começar a desconfiar. "Só a suspeita é suficiente para levar o caso ao poder público. Mas é uma coisa muito complicada, o médico fica constrangido", afirma Oliveira. Se não é o médico que descobre, é uma faxineira ou alguém da família que surpreende a mãe violentando a criança ou descobre seringas, medicamentos e outras pistas em armários e bolsas. "Eu não me aventuraria a dizer quantas crianças já morreram no Brasil vítimas dessa doença e ninguém nunca suspeitou", diz o pediatra.
Por aqui, os casos de síndrome de Munchausen por procuração são levados ao Juizado de Menores. Geralmente, o juiz só toma medidas drásticas, como colocar a criança sob tutela do Estado, em casos extremos. "O que é pior? Uma mãe 'doida' ou uma Fundação Casa?", questiona Oliveira. Nos EUA, alguns Estados consideram esse tipo de síndrome um crime, já que a mãe pratica violência contra o filho. Lá, a maioria dos casos é decidido por júri popular – que sempre coloca a mãe na cadeia. "Elas não resistem a essa compulsão, é uma doença muito estranha", afirma o psiquiatra Daker.
Entenda a doença | |
O nome do transtorno vem do Barão de Munchausen, um nobre alemão que contava histórias exageradas e mentirosas sobre suas aventuras como militar. | |
O que é a síndrome de Munchausen Acontece com adultos, normalmente solitários. O paciente provoca diversos sintomas e reações no corpo que exigem cuidados médicos, como injetar anticoagulante para estimular hemorragias, ou medicamentos para dar febre, ou ainda, se fere e não permite que a ferida cicatrize. Ele sabe que está se prejudicando, que pode até morrer ou perder um membro, mas não consegue parar, é uma compulsão. É muito comum o doente ter o "abdômen xadrez", todo cortado, de tanto que passou por cirurgias para checar se havia alguma alteracão nos órgãos abdominais que justificassem a dor (falsa) que sentia. Há casos em que o paciente começa a inventar que é psicótico, ele aprende como se comporta um psicótico e mimetiza suas atitudes. A doença normalmente deixa a equipe médica desorientada. | |
O que é a síndrome de Munchausen por procuração Acontece quando um responsável ou cuidador provoca e forja, de forma persistente, sintomas na criança. Entre 85% a 95% dos casos acontece da mãe em relação ao filho. É considerada uma forma de violência física contra o menor por exigir uma série de exames e investigações extremamente penosos para a criança. As mães chegam a falsificar materiais colhido para exames, induzindo o médico a tratamentos desnecessários ou investigações complexas e agressivas. É mais comum acontecer antes dos cinco anos da criança, a média é de 20 meses, o que não exclui casos que duram até a adolescência. Uma boa porcentagem das crianças que morrem sem causa determinada pode ter sido vítima de uma mãe com a síndrome. Estima-se que entre 1% e 5% dos casos de crianças que morreram subitamente foram vítimas da síndrome de Munchausen. |
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